Sem motivo para comemorar – artigo André Lacerda
Brasília (27 de fevereiro) – Esta semana deve registrar, muito provavelmente, um episódio histórico: as reservas internacionais brasileiras deverão ultrapassar, pela primeira vez, a marca de US$ 100 bilhões. O que poderia ser motivo de orgulho, comemoração, júbilo tornou-se uma dor de cabeça, graças aos juros muito acima do recomendável que o BC de Lula pratica. Em vez de olhar para o “colchão de liquidez“ que as reservas fornecem, os analistas só se dedicam agora a calcular quanto elas custam – desnecessariamente – aos cofres do Tesouro.
O assunto domina a discussão econômica desde as últimas semanas e tornou-se nota única nos últimos dias. Ainda mais depois da informação, divulgada na sexta-feira, de que o BC deve comprar US$ 7 bilhões em reservas este mês – um recorde absoluto. Neste ano já foram US$ 12 bilhões, sem que a estratégia de segurar as cotações do dólar obtivesse sucesso: hoje um dos esportes preferidos do “mercado“ é adivinhar quando a moeda americana passará a valer menos de R$ 2. Ninguém discorda de que isso é mera questão de tempo.
Economistas têm se dedicado a calcular quanto empilhar reservas tem custado ao pobre Brasil. Isso porque, para acumular divisas, o país é obrigado a emitir títulos remunerados a Selic – hoje os 13% anuais da mais alta taxa de juros reais do mundo – enquanto mantém seus dólares aplicados em treasuries americanos, que pagam 5% ao ano. São os pobres financiando ricos.
Neste domingo O Globo deu cores dramáticas a este custo: RS$ 8,3 bilhões, ou “um Bolsa Família“, em 2006, decorrentes da compra de US$ 34 bilhões em divisas. Em percentual do PIB, cerca de 0,4%. Há quem estime que este ano 0,7% da soma das nossas riquezas possa ser comido por esta despesa financeira, neutralizando o aumento em investimentos previstos no PPI. Este é o novo temor: o governo planeja, de um lado, reduzir o superávit fiscal para ampliar investimentos, mas, do outro, acaba tendo de gastar mais para compor reservas.
Os investimentos prioritários – o tal PPI – deste ano são estimados realisticamente em algo como 0,3% do PIB, mas o governo preferiu contabilizá-los pelo valor de face, reduzindo em 0,5% a meta de superávit primário para este ano. E o BC tomou isso em conta ao reduzir a Selic a conta-gotas em janeiro. “Quando existe uma incerteza, um BC conservador leva a sério o risco de que o cenário ruim vá se concretizar – no caso, uma expansão fiscal de 0,5 ponto percentual do PIB. O desfecho poderá ser o pior possível: o governo não conseguir investir o previsto, mas o Copom calibrar os juros assumindo o risco de que 100% dos investimentos vão de fato ocorrer“, alerta o Valor, em editorial (26/02/2007).
Fato é que, “se, além de um ritmo mais lento da redução dos juros, o governo for obrigado a gastar mais do que tinha programado na compra de dólares, o espaço orçamentário para os investimentos poderá ser substancialmente reduzido“, avalia Ribamar Oliveira no Estadão (26/02/2007). Em suma: se comprar muito dólar, a margem para investimento em infra-estrutura prevista no PAC diminuirá.
Em vista do quadro, surgem por todos os lados sugestões sobre como desarmar a armadilha da reserva-monstro. A unanimidade é a queda mais rápida da Selic, a ponto de o “mercado“ já ver quase como consenso a necessidade de cortar a taxa em 0,5 ponto percentual já na semana que vem, ao contrário da leitura que vigorou na reunião que reduziu o ritmo de queda, logo após o anúncio do PAC, em janeiro.
Turbinada a queda ou não, a realidade é que o juro brasileiro é uma anomalia sob quaisquer aspectos: os cerca de 8% reais pagos atualmente pelo BC de Lula superam em muito os 2% em média praticados por economias emergentes. Para 2007, estima-se dispêndio com juros equivalente a 6,39% do PIB. Com a expectativa de um juro básico médio de 12,16%, as despesas financeiras devem ficar próximas a R$ 140 bilhões. Em 2006, com uma Selic média de 15,3%, o país destinou 7,66% do PIB para o pagamento de juros, ou R$ 160 bilhões.
Evidência de que o juro está fora do lugar são as projeções de mercado para a inflação deste e do próximo ano. Pela quarta semana seguida, analistas ouvidos pelo BC reduziram seus prognósticos para o índice deste ano: a alta prevista para o IPCA caiu para 3,91%. Para 2008, a estimativa foi mantida em 4%. Ou seja, na bola de cristal do “mercado“, tanto a inflação deste ano como a do ano que vem devem ficar abaixo da meta de 4,5% fixada pelo governo. Isso já aconteceu em 2006, quando o IPCA registrou alta de 3,14%.
A explicação para juro tão anormal pode ser encontrada em paper escrito por dois diretores do BC, entre eles o polêmico Afonso Bevilacqua: nos últimos anos o país teve de pagar taxas estratosféricas para conquistar credibilidade junto ao mercado e neutralizar os temores de descontrole inflacionário, principalmente no início do governo Lula. O problema era que a expectativa de inflação de analistas independentes, influenciados pela inflação corrente ainda elevada, continuava longe das metas. Ou seja, o BC acreditava na queda da inflação, e o mercado, não. Nome singelo disso: risco Lula.
Não há saída fácil para o dilema macroeconômico brasileiro, mas o que menos se vê é o governo tentando achar uma solução para um problema cada vez mais grave que ameaça nossa economia. Enquanto os juros não deixarem de ser a anomalia que hoje são, o país estará sempre às voltas com o risco de adoecer pelo “mal holandês“ – nome dado à perda de competitividade de setores manufatureiros exportadores de ponta em função da valorização excessiva de suas commodities. É preciso, pois, praticar boa política econômica, o que Lula e os seus não têm feito.
*André Lacerda é jornalista e editor do site do ITV