Augusto Nunes: novo livro de FH é leitura indispensável

Memórias do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ajudam a conhecer o Brasil profundo e a alma do autor

Notícias - 01/04/2006

Jornal do Brasil (1º de abril) – O que não faltou naquele teatro no bairro do Bexiga, em São Paulo, foi celebridade. Na platéia, atores como Lima Duarte ou Gianfrancesco Guarnieri contracenaram com atrizes de fina linhagem – Regina Duarte e Bruna Lombardi, por exemplo. A elite da música falou pela voz de Chico Buarque e Elis Regina, que trocaram gentilezas com intelectuais de grosso calibre: Florestan Fernandes, Mário Pedrosa, Francisco Weffort, Bolivar Lamounier. Em companhia de políticos da ala esquerda do MDB, todos aguardaram ansiosos a aparição do candidato da platéia ao Senado. Se também o povo estivesse ali, teria sido perfeita a festa de abertura da campanha de Fernando Henrique Cardoso, celebrada no outono de 1978.

A estrela do happening chegou ao teatro pela porta da frente. Atravessou o corredor quase correndo, saudado por aplausos, sorrisos e gritos dos eleitores famosos, que cantaram o jingle assinado por Chico Buarque. O grande compositor reciclara os versos da popularíssima canção Acorda Maria Bonita. Por telefone, Chico havia apresentado a versão a Fernando Henrique: “A gente não quer mais cacique/ A gente não quer mais feitor/ A gente agora está no pique/ Fernando Henrique pra senador“. Ao subir ao palco que ocuparia solitariamente, ele não imaginava que nunca mais desceria. Mas o príncipe dos sociólogos não demoraria a descobrir que se transformara em político profissional.

Foi uma conversão tardia para alguém aparentemente predestinado a ocorrências precoces. Tinha 31 anos quando publicou Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. Tinha 33 quando os vitoriosos de 1964 tentaram liquidar a carreira do professor. Tinha 37 em 1968, quando protagonizou um dramático paradoxo: tornou-se catedrático da Universidade de São Paulo, mas foi aposentado em dezembro pelo AI-5. Tinha 38 quando ingressou no olimpo da sociologia a bordo do livro Dependência e desenvolvimento na América Latina, logo incorporado à estante dos clássicos.

E tinha 47 naquela noitada no teatro. É muito para iniciações políticas. No Brasil, caçadores de votos iniciam o aprendizado na faixa dos 20, como vereadores. Assimilam ensinamentos básicos – chamar todo eleitor pelo nome, abraçar ternos ou farrapos com igual entusiasmo, equilibrar-se em palanques movediços – e então começam a sonhar com prefeituras e assembléias legislativas. Quase cinqüentão, Fernando Henrique era um esquerdista militante, mas só agira no território da universidade e da imprensa. De temperamento retraído, avesso a gestos efusivos, pouco habituado a concessões populistas, nem de longe lembrava o estereótipo do político brasileiro. Começar já pelo Senado parecia muita pretensão.

Essas e outras interrogações são esclarecidas em A arte da política: a história que vivi. Enriquecido pela organização editorial do brilhante jornalista Ricardo A. Setti, o livro exibe um Fernando Henrique Cardoso surpreendentemente falante, pródigo em confidências sobre fatos e temas que nunca freqüentaram as entrevistas que concedeu. “Cansei de ler que “desde pequenininho“ queria ser presidente, se não pudesse ser papa…“, ironiza no primeiro parágrafo. Em outro trecho da obra, recusa a imagem de vaidoso. “Talvez minha vaidade seja menor que a inteligência“, informa. A frase sugere que Fernando Henrique se envaidece também da própria inteligência.

O livro alterna revelações preciosas com análises que identificam um sociólogo em ótima forma. Descreve a transformação do aprendiz desastrado em político astuto. Fernando Henrique garante que mudou de profissão graças ao acaso (e às punições impostas pela ditadura militar, que incluíram o exílio). “Mas sempre tive vocação para liderar“, ressalva. O noviço que em 1978 se elegeu suplente do vencedor Franco Montoro aprendeu depressa. Virou presidente da República e sigla. Antes de FH, o país só tinha JK.

Ao revisitar o passado e percorrer bastidores só agora devassados, o ex-presidente permite ao leitor conhecer o Brasil profundo e também a alma do patriarca do PSDB. É o evangelho segundo FH. É leitura indispensável.

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01/04/2006